Inquérito do Supremo Tribunal Federal que investiga ‘fake news’ viola liberdade de expressão

by | May 27, 2019

author profile picture

About Nomfundo Ramalekana

Nomfundo completed her LLB at the University of Pretoria. She has a BCL and an MPhil and DPhil (Law) from Oxford University. She was a Research Associate for the Africa Oxford Initiative and a blog editor for the Oxford Human Rights Hub Blog. Currently, Nomfundo is a lecturer in the Public Law Department at the University of Cape Town, South Africa. Her broad research interests are in constitutional law, comparative human rights law, anti-discrimination law, feminist legal theory and critical race theory.

Em 14 de março, o Supremo Tribunal Federal abriu um inquérito sigiloso, de ofício, para investigar supostos crimes contra a honra de seus ministros e ‘fake news’ sobre a corte. Estão nesse inquérito as principais ações recentes contra a liberdade de expressão, como a censura à divulgação de atos de corrupção pela imprensa e o confisco de computadores de críticos ao STF ao redor do país pela Polícia Federal.

O inquérito foi aberto pelo presidente do STF, o ministro Dias Toffoli – principal alvo das acusações de corrupção divulgadas pela imprensa nos meses que seguiram a abertura da investigação. Seu objetivo é investigar crimes cometidos por usuários de redes sociais e por veículos da mídia. Contudo, o inquérito se tornou uma preocupação nacional após a ordem de censura de reportagem “O amigo do amigo do meu pai” da Revista Crusoé, em 13 de abril. A matéria divulgou e-mails de Marcelo Odebrecht em que Dias Toffoli, à época Advogado-Geral da União do governo Lula, supostamente envolvia-se em transações corruptas – seu codinome entre os diretores da empreiteira seria “amigo do amigo do meu pai”.

O inquérito é permeado por preocupantes ilegalidades. Primeiramente, sua abertura de ofício é baseada no artigo 43 do Regimento Interno do STF, que dá competência ao presidente da corte para investigar crimes cometidos na sede ou nas dependências do STF. É extremamente forçoso incluir crimes cometidos na internet em tal previsão. A Constituição Federal determina que a competência para investigar crimes federais, como o presente caso, é da Polícia Federal ou do Ministério Público Federal.

Por essa razão, a Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, requereu o arquivamento do inquérito. Em sua petição, ela argumentou que a investigação de ofício viola a separação dos poderes, o sistema acusatorial e o princípio do juiz natural ao concentrar no STF a competência para investigar, acusar e julgar quem porventura desagrade os ministros. Além disso, constatou que a competência para tal inquérito seria sua, como representante do MPF, e, por isso, requeria o seu arquivamento por sua inconstitucionalidade. O relator, ministro Alexandre de Moraes, negou seu pedido.

A segunda ilegalidade é a ausência de especificação de condutas ou investigados. De acordo com a decisão do ministro Alexandre de Moraes, o inquérito investiga “a existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares, extrapolando a liberdade de expressão”. Com esse escopo amplo, os poderes investigativos do STF estendem-se a um nível autocrático, autorizando-o a encaixar qualquer coisa dentro de um inquérito sigiloso – como foi o caso da reportagem da Crusoé, que não era parte da investigação original.

O terceiro problema jurídico é que, ao proibir reportagens e críticas realizadas em contas privadas de redes sociais, o STF incorre em censura, o que é vetado pela Constituição Federal. Nos últimos meses, a alegação de ‘fake news’ tem sido usada amplamente por autoridades públicas como forma de incitar o público contra a mídia. O presidente Bolsonaro e seus familiares são alguns dos principais personagens a usarem essa tática, especialmente para descredibilizar as reportagens que têm evidenciado suas conexões com funcionários fantasmas, desvios de verbas públicas e milícias. Entretanto, políticos guerrearem contra a mídia é uma coisa; ministros da corte suprema censurarem, quando deveriam ser a última palavra em garantias constitucionais, é outra bem mais grave.

Em 18 de abril, após cinco dias de censura, o ministro Alexandre de Moraes recebeu documentos da Polícia Federal que provavam a veracidade da reportagem da Crusoé e finalmente revogou a decisão que proibia sua publicação. Contudo, tal revogação só veio depois que o público já havia tido amplo acesso ao conteúdo da reportagem através de grupos do WhatsApp e de outros jornais que a publicaram em protesto.

O inquérito continua sigilosamente. A opinião pública cada vez mais se vira contra o STF e um grande protesto que inclui críticas à corte em sua pauta está marcado para o dia 26 de maio – convocado pelo próprio presidente. Ao mesmo tempo, discute-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar eventuais abusos cometidos pela corte no Senado, a chamada “CPI da Lava-Toga”. A democracia brasileira ainda tem um longo caminho até provar sua estabilidade.

Share this:

Related Content

0 Comments

Submit a Comment